Estou me invadindo. Estou prestes
a conhecer a parte de mim que ainda não respirou, não caminhou na liberdade do
viver. Eu olhei e, avidamente, exclamei: cru! Minha segunda parte estava crua. O
que une minhas duas partes é o extremo eixo de um intervalo que me deu
existência. O meu lado inumano, o pólo que magnetiza minhas duas partes
tornando-me um. Porém, minha existência era resultado de três. Meu lado vida, o
que posso mostrar, o lado cru, o que ainda não sei, e o lado coisa, que me
permite sentir Deus em sua melhor forma, meu lado imperfeito.
Eu
era tão criatura, tão coisa, que barro divinizado era a verdade que me tinham
ensinado. A minha submissão era a maior prova de amor que podia oferecer para
Aquele que me criou. Sacrificar meu eu, meu lado cru, pois não condizia com a
beleza Dele; proibia-me, com pão e vinho, me conhecer. Não podia sentir a
matéria que loucamente gritava em mim, o que eu estava negando? A quem eu
estava enganando? Deveria eu seguir o exemplo de Jó?
Descia.
Mergulhava nas profundas águas que cobriam meu coração. O meu lado cru exigia
posse total de minha razão; me sentia perto do fogo, este queima a face de Deus
e impede que meus olhos O vejam – eu não via, então o desespero de minha vida
me arrebatava. Permitir-me não significava permissão a ponto de abrir a porta
para o outro. O fogo acendia minha fraqueza, talvez a minha maior fraqueza seja
minha melhor coragem. É quando falo sem parar e não entendo e, mesmo assim,
alguém ri achando graça da desgraça que reproduzo, uso, para esquecer o fogo
que me queima.
Talvez
o fogo que me queima seja minha vida no auge de sua transformação. A passagem
do ser abjeto, à existência viva que se espalha em meu corpo, dando-me palavras,
sentido, medo, amor, ódio, piedade e vontade. Então, com afinco, me questiono:
quem está vivendo? Eu ou a criatura crua que não corresponde à máscara que se
afivela em meu rosto? O fogo queima e o ar que respiro vai, lentamente,
apertando meu peito deixando a água entrar. Água e fogo tudo em mim a se misturar,
questionar o que de mim só Ele sabe. Sua parte em meu corpo não tem palavra. A
definição desta possa estar no meu contato com as coisas, quem sabe nelas eu
encontre a chave para revelar o enigma que construo em mim. A parte vida respira
concluindo os movimentos e suas formas. A parte crua exige que eu deixe a
máscara e permita-me ver que a luz não é saída, ela dependente do sangue que se
esconde por de trás da ingenuidade de meu sorriso. A terceira parte une as
duas. É a parte elementar, que O suporta em sua melhor forma. A forma bonita
que meus olhos não viram, mas sabem que é.
Estou tão
desesperado. Intrigado com tudo que sei. Peço ajuda para alguém, entretanto sei
que ninguém pode me escutar. Ninguém entenderia se eu dissesse: “não é vida o
que existe em mim. É sua mentira que me mantém preso a este chão e me faz
chorar, só, em meu quarto, esperando que alguém me abrace”.
Um abraço
seria mais que um consolo. Minha voz descansaria, interrompendo meu hábito de
gritar; meus braços suplantados se apoiariam neste alguém e, enfim, me sentiria
feliz, contente, por saber que fui ouvido. Mas o silêncio sempre chega antes. A
morte sempre chega antes. Eles não me deixam, e também não quero escapar. Acho
que devo pular do penhasco onde estou.
Eu vejo um
abismo, porém não tenho medo de pular. Tenho medo de falhar no que, realmente,
quero falar. Entender o que eu penso e escrever é difícil. Quero Deus naquilo
que amo, em sua melhor forma, quando eu não tiver nenhuma palavra para adorá-lo
por sua imensidão. Não me calo, sei que devo testemunhar como o cru da minha
vida permitiu-me ser depois de ter abandonado a participação. O vinho e o pão.
Eu e minhas metades, tudo a se renovar. Por isso existe agonia; você sofre,
chora e quer encontrar perdão para ser feliz – você encontra, falta algo,
sente-se vazio e o fogo começa a arder. Por isso busca encontrar-se e o cru da
vida é sua melhor beleza, aquilo que ninguém pode roubar – cada um tem o seu.
Então vê lá embaixo do abismo a solidão, o fogo que arde é real, o restante não
é. E de novo eu sinto: água e fogo.
Tão depressa
eu resolvo aceitar, receber os segredos que minhas mãos protegeriam. O amor
seria colocado em mim, minha aliança com o real. Alienado pelo mundo eu me
proibia de desafiar suas leis. Quem não cumpre leis não ama; com isso eu
prometia esquecer o ritual o qual me dediquei para cair no esquecimento,
mergulharia no profundo sem nenhum receio de me machucar. O espírito é livre,
sabe voar. Só o corpo que não; eu haveria de libertá-lo, desceria até o fim, mesmo
que este não houvesse ou mesmo que o fogo me queimasse antes do processo
acabar. Eu estava mudando ou tudo isso é loucura? Acho que estou me
reinventando, as coisas pareciam mais verdadeiras. A água lava-me e o fogo
ascendia a crueza minha. Estava pronto.
Eu estava
pronto. Não tinha o que falar. Eu era resultado de três. O desequilíbrio, a
vontade de gritar concretizava o processo. Eu estava entendendo o que os poetas
escrevem durante a madrugada. O lado cru era tão real, que eu não compreendia a
realidade vivida por mim. Apenas tinha água e fogo. O penhasco de cuja beira me
aproximava era grande, minha nova condição exigia uma nova verdade. Quantas
verdades eu houvera criado para existir – eu era o meu melhor personagem. O
silêncio que marca a passagem de toda evolução era minha voz. Minha voz não
precisava mais de palavras. Eu estava entendendo o que vem depois da morte.
Tinha tão somente o que me era dado. Uma conquista que, gradualmente,
penosamente eu ia alcançando, ganhando. Não por saber, mas por me render ao meu
lado mais imprestável, aquele que por muito tempo gostou da escuridão. Quem
sabe a escuridão seja o reconhecimento de que a palavra é falha?
Eu estava
sendo um espelho sem luz. Então o que eu refletia se não tinha luz? escuridão, não! A escuridão é resultado da
luz e essa eu não tinha. Eu estava sendo o que os outros viam eu ser:
resultado, transformação, água e fogo. Ainda não entendia, não sabia o que
dizer nas horas que fico só, que me sobra o silêncio, e, enfim, entendo o que a
morte significa. Ela abriga a vida depois do sentido – o sentido é corrente que
liga as ações do mundo, eu sou o que sobra. O que sobra não faz falta – esta é
resultado de algo que foi ganho, e eu ainda não compreendi o que ganhei
vivendo. O sentido e o que sobra é partes elementares do que eu sou agora. Com
isso me pergunto: o que ganhei? No alto do penhasco eu sentia que o ardor do
fogo era minha própria solidão, cujo vazio estava sendo cheio por águas. O
sentido ou sua falta era agora a compreensão mais cruel que eu obtinha. O
verossímil da vida, seu real, era o meu cru emanando um não para o movimento e
suas formas. O que eu tinha ganhado? Eu podia desfrutar de algo?
E
se eu tivesse, desfrutaria o quê? Várias perguntas e a realidade inundavam o
que eu estava sendo. A água encobria tudo que eu tinha. O que eu não tinha:
sobra e queima? Ora minha vontade era pular e, deixar o impulso da queda ganhar
minha existência. Se houvesse fim eu morreria – morreria dentro de mim, mas se
este não existisse, eu viveria caindo; nesta queda quem sabe o melhor de mim
escapasse, sobrevivesse a esse processo de evolução.
O
que digo agora pode parecer perda total do sentido, mas nesse exato momento
sinto a melhor forma Dele a me possuir – é como se fôssemos um e o que sobra
não é eu, apenas o outro que tem em sua face a máscara. O lado vida e o lado
cru seriam destruídos no sem fim. O fim tem lógica, então é plausível de
vivência para ambas as partes. Só a falta de nexo pode me salvar. O que de mim
Ele quer, o que de mim os outros vêm. Sou, pra mim, o que sobra – a falta, a
água que escorre e o fogo que queima. Uma eternidade não é, absolutamente, nada
para o que sou agora, nesse instante, que Ele me tem. Entretanto ainda estou lá
em cima do penhasco, imóvel esperando por minha melhor coragem se manifestar;
aquela-que-esqueci-quando-por- sina-me-tornei-maduro. Estou perto do podre; o
poder e a pobreza são irmãos, são coisas que entendo e ignoro toda vez que
invento uma verdade. Enquanto isso sinto-O tocar minhas mãos. Vejo coisas que
sem óculos não seriam reais, porém não temo. Eu sei que o final da estrada é
vazio. Em mim existe o vazio, que Ele se sente vazio ao tocar-me. Ao dar-me seu
melhor.
A
mudez da vida equilibra meu pensamento. O penhasco é a construção do que ainda
não suportei aceitar de mim, é aquilo que em mim fica preso, o que não consigo
expressar nas palavras. Alguém pode me indagar: e se ele desmoronar? Eu
responderei: que serei o que de mim não afirmo; a parte feia que não se encaixa
em nenhum movimento. Serei inumano. A contradição de toda uma evolução. A forma
sem nenhum processo.
No
alto do penhasco, no alto de minha vida, lembrei-me de uma frase escrita em
Coríntios 13: “mas, quando vier o que é
perfeito, então o que é em parte será aniquilado”. Então tudo fez sentido:
a falta, o medo, as partes que me compõem. Tudo desmoronou. A compreensão era a
resposta de meu processo, afinal só se muda o necessário: a água e fogo eram-me
impróprios, não estavam condizentes com a verdade escolhida por mim. O perfeito
destruiria todas as mentiras, derrubaria a imensidão do meu penhasco – aquilo
que precisei sem saber por quê. E isso não é tudo: é apenas mais um processo de
uma nova parte que criei para mim: terra e ar – o que é perfeito?
(Joe Sales).
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