terça-feira, 17 de julho de 2012

CORAÇÃO PREMATURO



E

la olhava o relógio constantemente. Eram duas horas da madrugada e o sono não lhe batia a porta do quarto. Isso era motivo para muita angústia e aflição, mas Karla se via livre de tais sentimentos. Ela estava preparada para romper com o maldito hábito de pensar.
            As horas iam e vinham. O espelho estava em paz. Os livros arrumados na estante. Sua família alegrava-se com o descanso prazeroso oferecido pelo sono. Porém, Karla estava atenta. Com os seus olhos vivos sentia medo sabe-se lá de quê. Algum temor ou pressentimento rondava seu pobre coração.
            Karla tinha apenas doze anos, e desde já sentia uma tristeza profunda daquelas que só os adultos são capazes de suportar. Porém sua capacidade mental avançada tornava-a diferente; algo dentro dela a fazia experimentar de antemão essa amargura.
            A luz de seu cômodo brilhava como uma estrela cadente. Do seu aposento ela escutava o ronco de, seu irmão, André. Isso a deixava tranquila, pois sabia que realmente ainda estava viva. Quando as vozes de sua casa silenciavam-se, ela sentia-se indefesa. Era como se uma espécie de mal a perseguisse na calada da noite. Algo confuso demais para sua compreensão.   
            Quando a manhã chegou, Karla levantou-se, rapidamente, e, seguindo sua mórbida rotina, preparou-se para ir à escola. Sua família estava reunida na mesa para o célebre café matinal. Nessa hora ela podia ver nas ações de seus familiares algo que passava despercebido por todos. No bom dia de sua mãe, ela enxergava uma mulher cansada de ter que se preocupar com os filhos e com sua própria vida profissional e, além do mais, ter que ouvir reclamações do marido. No aperto de mão de seu pai, ela sentia o pavor dele de ficar sozinho. Em André, seu irmão mais velho, que tinha dezenove anos, e ainda estava cursando o segundo ano do ensino médio, ela observava um modo estranho de levar a vida. Ele agia como se não importasse com nada.      
            Karla sentia o elo que unia as divergências de sua casa. Ela sempre ajudava seu irmão nas tarefas; organizava seu lar no período vespertino e, também, fazia aula de canto, pois o sonho de seu pai era ter uma cantora na família. Karla não estava de acordo com a maneira em que sua vida seguia. Não tinha espaço para si; seus sonhos e desejos existiam somente para evitar que sua casa desmoronasse. Contudo, suas noites estavam ficando cada vez mais longas e cansativas. Amadurecera tanto que o fedor de sua podridão era sentido à distância.
            Passou-se um ano e, enfim, chegou o aniversário de treze anos da pequena Karla. Ninguém de sua família lembrou-se; todos estavam correndo, de um lado para o outro, com a agitação perspicaz da vida. Amigos então só imaginários. Karla pensou que sua família arquitetava uma festa surpresa, mas suas expectativas foram pela descarga. Ao chegar a noite, todos estavam jantando normalmente como se nada demais estivesse acontecendo.
            Karla percebeu que todos haviam se esquecido de seu aniversário. Ela ficou extremamente magoada, pois nem ao menos desejaram-lhe felicidades. Então decidiu banhar. Quando percebeu que, misturadamente, a água fria que caia sobre seu corpo gotejava sangue, ela gritou. Ficou apavorada, nunca imaginou que isso aconteceria assim. Nesse instante vários pensamentos atordoaram-na e a única coisa que conseguiu dizer foi: mens-mens-mens-tru-a-ção (a menarca).
             Ela estava tão incomodada com a situação que se sentou no piso do banheiro. Sem saber o porquê, começou a chorar. Uma forte onda de raiva inchara seu pobre coraçãozinho. Sem vontade alguma, debatia-se, com sua metamorfose antecipada, refletindo sobre o que aconteceria a partir de então. Sua mãe, seu pai, seu irmão e ela mesma... Como lidar com essa situação nova?
            A mãe de Karla estranhou a ausência da filha e foi verificar o que se passava. Bateu na porta e perguntou se havia alguma coisa errada. Ela balbuciou que estava tudo bem. Então sua mãe retornou à mesa e tranquilizou seu esposo.
            Karla sabia que dentro dela não estava tudo bem. Havia muita coisa errada, mas ela preferia o silêncio. Era melhor não importunar seus familiares com suas queixas, pois seria inconveniente de sua parte preocupá-los com suas crises de adolescente incompreendida.
            Após o banho Karla foi, imediatamente, para seu quarto; este era seu refúgio e, em determinadas horas, também cativeiro. A menina encaminhou-se para sala aonde seus pais assistiam à novela. Seu irmão, como de costume, vagabundeava pela praça com seus colegas. Karla desejou-lhes uma boa noite e, em seguida, voltou-se ao quarto.
            O pai de Karla notara um ar melancólico na filha e perguntou se sua esposa notara, porém seu esforço foi contido num rápido abafo de a novela é mais importante! Então ele se quietou e, abraçado a ela, ficou.
Em seu quarto, Karla encarava um novo dilema e, como não tinha coragem de conversar com sua mãe, preferiu enfrentar a mudança sozinha. As horas, mais uma vez corriam. Como de costume ela fitava o relógio. Nada de seu irmão chegar. A demora deixou-a preocupada, pois o ponteiro marcava três horas da madrugada. O temor crescia em seu peito. Ela até pensou ir atrás dele, mas de que adiantaria. Karla resolveu ficar esperando na sala – a menina era muito apegada ao irmão. Dentro de sua alma uma voz gritava alertando de um perigo eminente, mas tudo parecia loucura. Ela pensava que isso era fruto de sua decepção. Então, sem se preocupar em fazer uma escolha, pegou um livro. Apenas queria algo pra passar o tempo. Quando olhou o livro percebeu que já tinha lido. Titulava-se Perto do Coração Selvagem*.
Karla recostou-se na poltrona e dedicou-se à leitura. Eram quatros horas e nada. De repente, ela escutou um barulho de briga e percebeu que a voz de seu irmão estava misturada à balbúrdia. Rapidamente abriu a porta e observou uma roda de garotos. Dois deles estavam no meio brigando. Ela fitou bem olhos em seu irmão e, numa reação desesperada, gritou. Depois só conseguiu avistar o corpo de seu irmão todo ensanguentado, pois um dos garotos, assustado, sacou o revólver.
Pobre garota! Ficou em estado de choque. Seu irmão estava morto diante de seus olhos. A dor foi tamanha, que a menina não resistiu; enlouqueceu e assim o elo foi quebrado. Seus pais se separaram, pois um jogava à culpa no outro das tragédias ocorridas no lar.
A pequena Karla, hoje, acha que escuta seu irmão. Seu pobre coração prematuro não suportou os impulsos violentos da vida.


* LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

(Joe, Sales)

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A morte do Chico Preto




Chico, tocador de violão                                                        
Com seu chapéu branco                                                        
Calças e sorrisos largos.                                                         
Olhos verdes esmeralda                                                         
– Que negro galante,                                                               
Suspirava as mulheres.                                                            
E ele, sabendo disso,                                                               
Exibia-se. Tocava                                                                   
Seu charme nas notas                                                               
Da canção. Que voz!                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        
Chico era de matar                                                                   
E matava os seus inimigos                                                      
(tantos, tantos... cantava depois ele!)                                        
Chico era homem de lei própria:                                              
Mas vale a liberdade, do que aliança                                     
Na mão. Era sempre não para essas                                          
Coisas de coração. Homem forte                                            
Não se avexa com isso – cantarolava                                    
Ele nos bares. Nas esquinas e nos bordeis!                            
Os pais das moças detestavam-no.                                          .
Mas a docíssima voz do negro                                               
Encantava até os jovens delicados.                                         
Numa noite o Chico apaixonou-se.                                         
Viu Maria passar, foi só isso para                                           
Fazer perder o negro a cabeça...                                              
O negro doido, sério quis ficar.    

                                              
Mas a Maria impossível
Ser-lhe-ia. Seu pai, coronel
De muita influência, nutria
Ódio amarguíssimo pelo
Negro galanteador.
A mãe de Maria adoentada
Mal podia velar pela filha.
O Chico a par de tudo isso
 Fez pinta de bom moço
 Quis ajudar a mãe da                                                                                                                                                  
 Moça. Assim conquistaria
 Maria.
 Quando o coronel soube,
  Veio-lhe uma ideia.
 Armou uma tocaia,
 Sem que Maria percebesse.
 O pai a fez buscar remédios
 E ela chamou o Chico.
 Ele nem parecia mais
  Aquele negro esperto.
 Num tiro veloz
 O Chico perdeu a bela voz.
Maria chorou, gritou, quis
Ajudar. O pai a levou para
Casa. Mas a morte vem
 Para todos. Naquele dia
 Chico e a mãe de Maria
 Partiram.


                                         
(Foi assim que a cidadezinha ganhou um herói e uma santa!) 


terça-feira, 3 de julho de 2012

MULHER APAIXONADA


Ninguém sobrevive, incólume, à força de uma paixão”. Nádia Battella Gotlib

            Um livro grosso em suas mãos. Enquanto as pessoas iam, se moviam no passo rápido e fatídico das horas, ela lia Drummond. Seu coração batia forte. Seus olhos estavam mergulhados nas palavras. Seu pensamento se difundia com os sonetos, os versos e outras crônicas. Seus olhos fixos viam surgir à verdade que toda poeta tenta esconder, diz e ninguém se dá o trabalho de entender. Lucrecia estava perdidamente apaixonada, mergulhada no mundo e no submundo das palavras. Sua maquiagem clara parecia nada com a cor nova que emanava em sua leitura. Um mundo novo: se perguntava onde estivera que nunca percebera o que contava o poeta. Ela se sentia cega, nua, crua. A coisa foi tão rápida que a avidez foi pouco em sua transformação.
            O mundo parecia que estava em construção. Oito dias foram gastos, mais um no calendário, o dia do noticiário. O poeta ainda fez o décimo: a poesia sempre faz nascer algo insólito em meio à solidão: próprio ou impróprio estamos nós querendo decifrar sua opinião. Toda situação requer rima e muita dor. O rancor faz parte de toda discussão e a inveja não fica de lado. E são pecados? Pecado é não ler poesia. Achar que Deus fica com um caderno anotando as mentiras de sua criação. Ora, Ele, não é compaixão, amor? Se assim não for, seu filho é a mais bela piada de mau gosto. Drummond a enchia de alegria. Lucrecia sentia a vontade de abraçá-lo, beijá-lo e ele estava morto. Só suas palavras restaram. Ele não teve um terceiro dia. O quarto é o romance, ele não escreveu.
            As horas seguiam, a tristeza sentida outrora desfazia-se nas metáforas: palavras, mistérios, casas, pessoas, um novo sentimento nascia em seu peito. Lucrecia olhou sua roupa. Estava vestida de noiva. Sentada num banco. Vários estranhos. Um temor pairou sobre si. O mundo de antes não era mais o mesmo. O mundo de agora também era outro. Sua vida, sua leitura, seu vestido: Lucrecia sentiu-se fustigada. Sua sobrancelha arqueada na testa. Um dilema. Um Problema. Muito irritada: sem consolo. A poesia tomava corpo em suas desilusões. Ela se perguntava o que fazia ali, naquele banco, parada. Os estranhos agiam de forma mais esquisita. O mundo estava de ponta cabeça: reviravolta. Sua vontade era de estar em algum poema. Seus olhos incrédulos tentavam entender o porquê disso. Embaraçada – espantada: o vestido novíssimo – por sinal caríssimo. De certo ela havia se cansado. Algum noivo deveria estar esperando-a. Lucrecia ficou afobada. Onde estava? Lembrou-se do livro. Fechou-o.
            Um homem de branco chegou perto de si. Pegou sua mão. Estudou seus trejeitos, sua mudança de comportamento. Ela abriu seu livro. Segurou-o forte. O estranho não haveria de roubá-la. Se por acaso casasse não seria feliz. Sua verdadeira paixão estava no livro. Escondido. Ela temia. Se ele quisesse roubar seu segredo. Ela faria o possível para guardar sua memória. Os estranhos riam. O homem olhava-a de forma diferente. Dizia coisas aos outros. Anotava em sua caderneta. Será... – ela não sabia o que pensar. Temia. Só Drummond poderia salvá-la. O novo mundo era diferente para que Deus pudesse ouvi-la. Talvez nem se comovesse com suas queixas. Nem ela sabia ao certo o que a atormentava. O amor escorria em suas veias. Os outros riam. Permaneciam sobre a tensão da loucura. A dúvida de Lucrecia aumentava. O livro em suas mãos. Seu vestido branco atraia os olhares.
            E foi dos olhares que sua tragédia começou. A pobre moça foi abandonada no altar. Sua dor foi tão grande que não resistiu: a loucura arrebatou-lhe. Sua mãe desconsolada não queria acreditar. Os pais do noivo visitavam-na todo dia, abalados com a irresponsabilidade de seu filho. Lucrecia todo dia amava o livro. Somente nele estava a liberdade de sua inglória. Ela ficou anos internada. Até que, em seu aniversário a surpresa, seu quase noivo foi visitá-la. De relance ela o conheceu – lembrava-se daquele homem elegante, de traços bem feitos, que um dia tomou seu coração: e a emoção veio forte, tão forte que ela não suportou.  A paixão bateu aceleradamente, que a cura para sua mente foi à liberdade. Lucrecia voou ao encontro da poesia.  

(Joe Sales)

domingo, 1 de julho de 2012

ÁGUA E FOGO


Estou me invadindo. Estou prestes a conhecer a parte de mim que ainda não respirou, não caminhou na liberdade do viver. Eu olhei e, avidamente, exclamei: cru! Minha segunda parte estava crua. O que une minhas duas partes é o extremo eixo de um intervalo que me deu existência. O meu lado inumano, o pólo que magnetiza minhas duas partes tornando-me um. Porém, minha existência era resultado de três. Meu lado vida, o que posso mostrar, o lado cru, o que ainda não sei, e o lado coisa, que me permite sentir Deus em sua melhor forma, meu lado imperfeito.
            Eu era tão criatura, tão coisa, que barro divinizado era a verdade que me tinham ensinado. A minha submissão era a maior prova de amor que podia oferecer para Aquele que me criou. Sacrificar meu eu, meu lado cru, pois não condizia com a beleza Dele; proibia-me, com pão e vinho, me conhecer. Não podia sentir a matéria que loucamente gritava em mim, o que eu estava negando? A quem eu estava enganando? Deveria eu seguir o exemplo de Jó?
            Descia. Mergulhava nas profundas águas que cobriam meu coração. O meu lado cru exigia posse total de minha razão; me sentia perto do fogo, este queima a face de Deus e impede que meus olhos O vejam – eu não via, então o desespero de minha vida me arrebatava. Permitir-me não significava permissão a ponto de abrir a porta para o outro. O fogo acendia minha fraqueza, talvez a minha maior fraqueza seja minha melhor coragem. É quando falo sem parar e não entendo e, mesmo assim, alguém ri achando graça da desgraça que reproduzo, uso, para esquecer o fogo que me queima.
            Talvez o fogo que me queima seja minha vida no auge de sua transformação. A passagem do ser abjeto, à existência viva que se espalha em meu corpo, dando-me palavras, sentido, medo, amor, ódio, piedade e vontade. Então, com afinco, me questiono: quem está vivendo? Eu ou a criatura crua que não corresponde à máscara que se afivela em meu rosto? O fogo queima e o ar que respiro vai, lentamente, apertando meu peito deixando a água entrar. Água e fogo tudo em mim a se misturar, questionar o que de mim só Ele sabe. Sua parte em meu corpo não tem palavra. A definição desta possa estar no meu contato com as coisas, quem sabe nelas eu encontre a chave para revelar o enigma que construo em mim. A parte vida respira concluindo os movimentos e suas formas. A parte crua exige que eu deixe a máscara e permita-me ver que a luz não é saída, ela dependente do sangue que se esconde por de trás da ingenuidade de meu sorriso. A terceira parte une as duas. É a parte elementar, que O suporta em sua melhor forma. A forma bonita que meus olhos não viram, mas sabem que é.
Estou tão desesperado. Intrigado com tudo que sei. Peço ajuda para alguém, entretanto sei que ninguém pode me escutar. Ninguém entenderia se eu dissesse: “não é vida o que existe em mim. É sua mentira que me mantém preso a este chão e me faz chorar, só, em meu quarto, esperando que alguém me abrace”.
Um abraço seria mais que um consolo. Minha voz descansaria, interrompendo meu hábito de gritar; meus braços suplantados se apoiariam neste alguém e, enfim, me sentiria feliz, contente, por saber que fui ouvido. Mas o silêncio sempre chega antes. A morte sempre chega antes. Eles não me deixam, e também não quero escapar. Acho que devo pular do penhasco onde estou.
Eu vejo um abismo, porém não tenho medo de pular. Tenho medo de falhar no que, realmente, quero falar. Entender o que eu penso e escrever é difícil. Quero Deus naquilo que amo, em sua melhor forma, quando eu não tiver nenhuma palavra para adorá-lo por sua imensidão. Não me calo, sei que devo testemunhar como o cru da minha vida permitiu-me ser depois de ter abandonado a participação. O vinho e o pão. Eu e minhas metades, tudo a se renovar. Por isso existe agonia; você sofre, chora e quer encontrar perdão para ser feliz – você encontra, falta algo, sente-se vazio e o fogo começa a arder. Por isso busca encontrar-se e o cru da vida é sua melhor beleza, aquilo que ninguém pode roubar – cada um tem o seu. Então vê lá embaixo do abismo a solidão, o fogo que arde é real, o restante não é. E de novo eu sinto: água e fogo.
Tão depressa eu resolvo aceitar, receber os segredos que minhas mãos protegeriam. O amor seria colocado em mim, minha aliança com o real. Alienado pelo mundo eu me proibia de desafiar suas leis. Quem não cumpre leis não ama; com isso eu prometia esquecer o ritual o qual me dediquei para cair no esquecimento, mergulharia no profundo sem nenhum receio de me machucar. O espírito é livre, sabe voar. Só o corpo que não; eu haveria de libertá-lo, desceria até o fim, mesmo que este não houvesse ou mesmo que o fogo me queimasse antes do processo acabar. Eu estava mudando ou tudo isso é loucura? Acho que estou me reinventando, as coisas pareciam mais verdadeiras. A água lava-me e o fogo ascendia a crueza minha. Estava pronto.
Eu estava pronto. Não tinha o que falar. Eu era resultado de três. O desequilíbrio, a vontade de gritar concretizava o processo. Eu estava entendendo o que os poetas escrevem durante a madrugada. O lado cru era tão real, que eu não compreendia a realidade vivida por mim. Apenas tinha água e fogo. O penhasco de cuja beira me aproximava era grande, minha nova condição exigia uma nova verdade. Quantas verdades eu houvera criado para existir – eu era o meu melhor personagem. O silêncio que marca a passagem de toda evolução era minha voz. Minha voz não precisava mais de palavras. Eu estava entendendo o que vem depois da morte. Tinha tão somente o que me era dado. Uma conquista que, gradualmente, penosamente eu ia alcançando, ganhando. Não por saber, mas por me render ao meu lado mais imprestável, aquele que por muito tempo gostou da escuridão. Quem sabe a escuridão seja o reconhecimento de que a palavra é falha?                    iva que se espalha em meu corpo, dando-me palavra
Eu estava sendo um espelho sem luz. Então o que eu refletia se não tinha luz?  escuridão, não! A escuridão é resultado da luz e essa eu não tinha. Eu estava sendo o que os outros viam eu ser: resultado, transformação, água e fogo. Ainda não entendia, não sabia o que dizer nas horas que fico só, que me sobra o silêncio, e, enfim, entendo o que a morte significa. Ela abriga a vida depois do sentido – o sentido é corrente que liga as ações do mundo, eu sou o que sobra. O que sobra não faz falta – esta é resultado de algo que foi ganho, e eu ainda não compreendi o que ganhei vivendo. O sentido e o que sobra é partes elementares do que eu sou agora. Com isso me pergunto: o que ganhei? No alto do penhasco eu sentia que o ardor do fogo era minha própria solidão, cujo vazio estava sendo cheio por águas. O sentido ou sua falta era agora a compreensão mais cruel que eu obtinha. O verossímil da vida, seu real, era o meu cru emanando um não para o movimento e suas formas. O que eu tinha ganhado? Eu podia desfrutar de algo?
            E se eu tivesse, desfrutaria o quê? Várias perguntas e a realidade inundavam o que eu estava sendo. A água encobria tudo que eu tinha. O que eu não tinha: sobra e queima? Ora minha vontade era pular e, deixar o impulso da queda ganhar minha existência. Se houvesse fim eu morreria – morreria dentro de mim, mas se este não existisse, eu viveria caindo; nesta queda quem sabe o melhor de mim escapasse, sobrevivesse a esse processo de evolução.
            O que digo agora pode parecer perda total do sentido, mas nesse exato momento sinto a melhor forma Dele a me possuir – é como se fôssemos um e o que sobra não é eu, apenas o outro que tem em sua face a máscara. O lado vida e o lado cru seriam destruídos no sem fim. O fim tem lógica, então é plausível de vivência para ambas as partes. Só a falta de nexo pode me salvar. O que de mim Ele quer, o que de mim os outros vêm. Sou, pra mim, o que sobra – a falta, a água que escorre e o fogo que queima. Uma eternidade não é, absolutamente, nada para o que sou agora, nesse instante, que Ele me tem. Entretanto ainda estou lá em cima do penhasco, imóvel esperando por minha melhor coragem se manifestar; aquela-que-esqueci-quando-por- sina-me-tornei-maduro. Estou perto do podre; o poder e a pobreza são irmãos, são coisas que entendo e ignoro toda vez que invento uma verdade. Enquanto isso sinto-O tocar minhas mãos. Vejo coisas que sem óculos não seriam reais, porém não temo. Eu sei que o final da estrada é vazio. Em mim existe o vazio, que Ele se sente vazio ao tocar-me. Ao dar-me seu melhor.
            A mudez da vida equilibra meu pensamento. O penhasco é a construção do que ainda não suportei aceitar de mim, é aquilo que em mim fica preso, o que não consigo expressar nas palavras. Alguém pode me indagar: e se ele desmoronar? Eu responderei: que serei o que de mim não afirmo; a parte feia que não se encaixa em nenhum movimento. Serei inumano. A contradição de toda uma evolução. A forma sem nenhum processo.    
            No alto do penhasco, no alto de minha vida, lembrei-me de uma frase escrita em Coríntios 13: “mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado”. Então tudo fez sentido: a falta, o medo, as partes que me compõem. Tudo desmoronou. A compreensão era a resposta de meu processo, afinal só se muda o necessário: a água e fogo eram-me impróprios, não estavam condizentes com a verdade escolhida por mim. O perfeito destruiria todas as mentiras, derrubaria a imensidão do meu penhasco – aquilo que precisei sem saber por quê. E isso não é tudo: é apenas mais um processo de uma nova parte que criei para mim: terra e ar – o que é perfeito?                   

(Joe Sales).